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Angola minha terra

Angola minha terra

O meu caso de amor por Angola é quase tão velho como eu, pois bem jovem me levaram para lá.

Quando me comecei a entender por gente foi Angola que vi à minha volta. Não aquela Angola de que falavam os livros,mas uma Angola fria e triste de árvores negras e manhãs de nevoeiro, a Angola dos planaltos. A minha vida tem sido sempre uma espécie de jardim de cactos, tão depressa está cheia de flores, como de repente, só de espinhos.

Esta alternância principiou quando comecei a encontrar-me. Brinquei com os meninos da terra, falei umbundo e cacei passarinhos. Nunca precisei roubar fruta no quintal dos vizinhos, pois ia ao mato apanhar os "Lohengos", os "Maboques" e as "Nochas", que comia com os meus amigos às escondidas da minha avó, que não considerava essas coisas como frutas…embondeiros

Entretanto, começou a doença da pintura, com tintas que a minha mãe tinha, e quando elas acabavam eu fabricava as minhas com terras e frutas bravas e os pincéis eram feitos com pêlo de bicho do mato, velhos cartuchos de metal que eu serrava e um caniço… O pêlo amarrado era seguro com pez e funcionava…

Aos 15 anos fiz no Andulo, terra que eu não sei se ainda existe, a minha primeira exposição, promovida por um amigo do meu pai e que constava de aguarelas, desenhos e caricaturas.

Até aqui tudo eram flores, porém, começaram a aparecer os espinhos quando me mandaram para Luanda, fazer, já tarde e a más horas, o Liceu. A viagem, na época, já era uma autêntica aventura. Quando cheguei ao Dondo, descobri a tal outra Angola, onde tudo era calor, desconforto, mosca do sono, mosquitos…

Em Luanda encontrei um ambiente de cidade a que eu, menino do mato, não estava habituado. O povo falava kimbundo, que eu não entendia. Mesmo o português que eu falava era diferente daquela fala coloquial que a gente usava em casa. A toda a hora ouvia palavras novas. Quando me sobreveio o Camões, no Liceu, eu excomunguei o vate bastantes vezes…

Comecei então a pintar com tintas boas e ao mesmo tempo a descobrir a praia, gente da minha idade, pessoas e coisas que não conhecia.

De tudo isto resultaram insucessos nos estudos e atritos com o meu pai, do que resultou a libertação da tutela familiar. Comecei a viver só, com 17 anos. Fiz a primeira exposição em Luanda. wel

Aí apareceram uma data de espinhos na minha vida, pois passei a estudar à minha custa.

Entrei para o quadro administrativo fazendo parte da Missão Etnográfica, que recolhia material para o Museu de Angola. A Missão era chefiada por Álvaro Canelas e composta por mim e por um colega que sabia música - António Campino. Naquele tempo ainda não havia gravadores de som.

Corremos meia Angola: Quissama, Moxico, Dembos e outros lugares, desenhando e pintando. Entretanto, eu fazia também desenhos para mim. Embebia-me de paisagem. A terra, tão diferente do planalto, me encantava. As noites eram pontuadas de gritos de hienas, que vinham ali à nossa porta na Quissama.

As paisagens com imbondeiros enormes marcaram essa época e, apesar do aparente desconforto, tudo eram flores. Era Angola a tomar a pouco e pouco conta de mim.

Quando comecei a readquirir equilíbrio e tinha já mostrado Angola em Portugal, Espanha e outros lugares, sobreveio repentinamente 1961.

Por ocasião dos primeiros acontecimentos eu estava expondo no Museu de Angola. A exposição fechou antes de tempo. Eu não compreendia a situação de ver os meus amigos se entrematando. Acho que entrei em depressão e aproveitando um convite do Comandante Sarmento Rodrigues fui para Moçambique, onde passei 11 meses, desenhando pelo interior.

De regresso a Luanda expus no ABC a minha pintura abstracta. Lancei o livro Batuque de poesia. Logo a seguir visitei São Tomé.

Fui fazer uma exposição em Lisboa e, a convite do Itamaraty, fui visitar o Brasil. Ia para ficar três meses e acabei ficando seis, a maior parte do tempo em Salvador.

Publiquei o livro de poesia Muênho . Depois de ver o Brasil fiquei com vontade de conhecer a Guiné e Cabo Verde, para onde parti.pl

Encantei-me com Cabo Verde. Conheci o Jorge Barbosa, trocámos poemas, conversámos noites a fio, aquelas noites "sabe e silenciosa" do Mindelo. Subi ao vulcão do Fogo. A paisagem árida e titânica das ilhas empolgou-me e apesar da aspereza da terra quando de lá saí o meu jardim de cactos estava completamente em flor.

Daí fui para a Guiné - em plena guerra. O general Spínola através do seu monóculo deve ter pensado que pintor é mesmo raça de maluco e que não era hora de pintar coisas na Guiné… Pintei e não me arrependi A paisagem da Babel Negra é deslumbrante, e não posso esquecer a maravilha dos céus da Guiné, antes dos tornados.

Desta expedição resultou a maior exposição que até hoje levei a cabo. Ocupei duas salas do SNI. Uma, só com coisas de Angola e a outra com os aspectos da então África Portuguesa, que consegui reunir através dos anos. Acabei fazendo dois livros de desenhos Angola a Branco e Preto e …Da Minha África e do Brasil que eu vi… , o primeiro com prefácio do meu amigo Jorge Amado e o segundo com prefácio do saudoso Professor Câmara Cascudo, ilustre folclorista do Rio Grande do Norte (Brasil).

Convidado por Jorge Galveias, fiz, também, na altura a exposição "Mulheres de Angola", a primeira que realizei no Casino Estoril e que resultou num livro com gravuras a cores dos quadros expostos.

O meu jardim continuava óptimo, florido e viçoso. Regressado a Angola descobri o deserto.O Namibe em flor é um espectáculo que jamais esquecerei. Um amigo nosso, que era guia no deserto enviou-me um telegrama que dizia só: Venham - Choveu no deserto!

daFomos eu e a minha mulher e ficamos loucos ao ver um mar de delicadas florinhas azuis, rosa e brancas, que se desfaziam ao menor toque. Gramíneas ondeavam ao vento como uma seara de prata, onde antílopes, esguios como estátuas, passeavam - quais figuras de um frizo egipcio… Tenho saudades do deserto. Fui expor à África do Sul e logo a seguir voltaria a Lourenço Marques.

Entretanto, aconteceu o 25 de Abril. Dizem que foi muita coragem o abrir a exposição em plena agitação social…

O meu jardim nessa altura mostrava os espinhos por todos os lados.

Regressei a Angola para preparar a exposição programada para o Rio de Janeiro e, embora com uma aparente calma, já havia agitação. O meu livro Macuta e Meia de Nada , impresso em Sá da Bandeira, vinha para Luanda num camião que foi incendiado. Guardo um único exemplar, onde estão os meus poemas de Cabo Verde.

Entretanto, segui para o Rio, onde expus conforme o programa e lá fui contactado pela TAAG para fazer a decoração dos Boeing de Angola. Segui para Seatle onde estive fazendo o trabalho e logo depois regressei ao Rio, e daqui a Lisboa.

O regresso a Angola ficou problemático e voltámos para o Brasil, onde fui recomeçar vida em Salvador aos cinquenta e muitos anos.

O meu jardim de cactos estava pior que nunca. Metade das raízes estavam arrancadas e tive muito trabalho para as aconchegar na minha nova terra.

Entretanto, o calor humano dos amigos nos ajudou a recomeçar. Durante os primeiros meses fiquei agarrado aos queixos olhando para o vazio, mas a pouco e pouco fui ganhando coragem e comecei a pintar outra vez. Para exorcizar os meus fantasmas fiz mais um livro, Olohuma , que saiu pela mão amiga do Rodrigo Leal Rodrigues, de São Paulo. A vida tornou a entrar no caminho direito. O meu jardim na nova terra ganhou forças e deu novas flores que esconderam os espinhos.

…como não consegui viver em Angola vivia ela em mim, como coisa íntima e secreta e eu a mostro com o carinho de sempre a quem quer ou pode apreciá-la… por isso lhe chamo "Angola Minha Terra".

 

Albano Neves e Sousa