Ano 1, número 3 - Junho de 2003
Neste número:
 

CIDADÃO DO MUNDO
por Helder Ponte – Xinguila

Como todos os membros do fórum dos Antigos Alunos do Liceu Salvador Correia em Luanda, acompanho diariamente o que se vai publicando naquele jardim gozando o sabor das memórias de tempos idos agora resgatados por excelentes cronistas. Embora com menos frequência, naturalmente, deparo às vezes com mensagens que me tocam profundamente e se relacionam com algumas perguntas fundamentais às quais, apesar dos anos, não tinha ainda encontrado uma resposta convincente.

E o caso da memorável mensagem da Filomena Vieira acerca do debate “Portuguesa de Segunda” à pergunta posta pela “Jóia” do nosso site, a Guida Castro Ferreira, há já umas semanas atrás.

Como muitos, deixei Angola em Novembro de 1975, não sei como nem porquê. Talvez arrastado pela multidão de amigos que nos deixavam diariamente, pelo cenário de caixotes à espera de transporte no porto ou nos quintais, pela anarquia que se vivia na Universidade de Luanda, pelo clima caótico da economia do país, pelo cenário da ponte-aérea que em pouco mais de 4 meses esvaziou o país de quase meio milhão de cidadãos entre os mais privilegiados e capazes, pelas prateleiras vazias, pelas ruas vazias, pela cidade vazia, pela confusão gerada pelo caos e pelo medo, pelo ódio fratricida e pela guerra (que mal sabia eu se haveria de arrastar por mais de quarenta anos), pela morte que testemunhava todos os dias, ou talvez ainda mais por pressão familiar (então recém-casado havia dois meses). Talvez por qualquer outra razão que desconheça... deixei-me arrastar pela corrente e não tive a coragem nem a energia para bater o pé firme e dizer a mim próprio que Angola era o meu país, e que em Angola é que eu devia ficar.

Quando o avião descolou à noite de Luanda, senti uma tristeza e desolação tão profundas que só pararam horas mais tarde com o limpar dos olhos molhados ao recompor-me para o jantar que em breve ia ser servido pela hospedeira de bordo. Tinha perfeita consciência do momento presente e reflecti sobre o meu passado e o meu futuro, então incerto.

Pensei então no meu Pai que havia morrido um ano antes em Cabinda. Pensei no meu irmão Rui que resolutamente ficara a viver e a servir o país e a causa que tanto amara. Pensei na roça de café onde cresci, nos cafezeiros plantados nas vertentes cobertas de verde e da enorme sombra alta ainda mais verde. Pensei no meu tio Júlio que nunca conheci, que aos dezasseis anos morreu de uma billiosa na Roça Novo Fratel na encosta da Serra da Canda, sem ajuda médica ou remédios para a cura, pensei na resolução do meu avô em desfazer as portas da casa da fazenda para fazer um caixão mais digno para o seu único filho, e pensei ainda no belo mausoléu celebrando a sua breve juventude, agora esquecida para sempre. Pensei no pôr-do-sol na Ilha de Luanda ao fim da tarde, na Baía de Malembo em Cabinda, nas acácias rubras de Benguela, na biblioteca e claustros do Liceu Salvador Correia, na ermida da Nazaré e no Cemitério do Alto das Cruzes, nas buganvílias do Parque Heróis de Chaves, na goiabeira no nosso quintal em Luanda. Pensei nas Pedras Negras de Pungo Andongo, nas anharas infinitas do Moxico, no quente e frio do deserto do Namibe, nos amigos que deixava, nos criados que cresceram comigo, e naqueles que desapareceram sem deixar rasto.

Pensei também nas lendas que a minha Mãe me contava à noite enquanto menino acerca do primeiro encontro entre Diogo Cão e o Mani Congo, das fantásticas descrições de Pigafetta e de Cavazzi, da magnanimidade da Rainha Ginga, da bravura e sabedoria de N’gola Kiluange, do cativeiro de Paulo Dias de Novais e da fundação de Luanda, do sonho das minas de prata de Cambambe, da epopeia dos portugueses no reduto de Massangano, da dupla restauração de Angola por Salvador Correia e a sua armada vinda do Brasil, dos feitos de Luis Lopes de Sequeira na Batalha de Ambuila. Pensei também no terrível sofrimento e desumanidade da escravatura que durante 350 anos de guerra Kuata! roubou a Angola mais de 3,5 milhões de filhos, nos barcos negreiros e na terrivel morbidez da Passagem do Meio para os escravos, nas campanhas de ocupação do interior de Angola, na heróica luta de libertação nacional iniciada em 1961, pensei nas estórias de Luandino Vieira, nos versos de Agostinho Neto, António Cardoso, António Jacinto, Alexandre Dáskalos e outros mais. Pensei que um marco na minha vida ficara e que o desconhecido era agora o meu destino.

Com receio de os perder nos caixotes que mandámos para Lisboa, levei comigo no avião dois livros que eram um tesouro para mim; Os “ Poemas - Obra Completa de Alda Lara” e “Quissange - Poesia de Tomás Vieira da Cruz” que reli intensamente durante o resto da viagem e que, pela sua relevância neste meu testemunho, me sinto obrigado a transcrever um poema de cada um — um de uma angolana que viveu alguns anos em Portugal e o outro de um português que viveu a sua vida em Angola, como balizas do espaço cultural angolano de então:
        

Presença Africana

E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou,
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou a Irmã-Mulher
que tudo em ti vibra
puro e incerto....

A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços das palmeiras...

A do sol bom, mordendo
O chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim! ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!.... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculosos,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
longa história inconsequente...

Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente..
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!

Alda Lara
Benguela, 1953

De Tomás Vieira da Cruz transcrevo o seu poema Romagem ao Quicombo, escrito em 1938:
        

Romagem ao Quicombo

Vinham de toda a parte esses romeiros,
em procissão de imagens quase santas;
e os de mais longe foram os primeiros

que chegaram à grande romaria...
As léguas caminhadas eram tantas
que a distância é um pranto de alegria!

Vinham de Seles e do Amboim do norte
os homens brancos e de negra cor
que servem Portugal até à morte.

Vinham do Longa e da Quissama
todos que têm por lá o seu grande amor
a santa Muxima que os inflama.

Em fé ardente, e crente, e milagrosa
Vinham os Sobas de passadas guerras
com a sua corte altiva e caprichosa;

E moças lindas, cor da noite escura,
— negras flores do exílio em que te encerras,
ó minha Angola imensa, ó formosura!

E bandeiras daquelas mais festivas,
certo dia tornadas prisioneiras,
ali regressam, livres e altivas.

Quando Elas passam, com o seu ar contente,
batem palmas as palmas das palmeiras,
e o Sol, subindo alto, é mais ardente!
.............................................................................

Diz a missa o mais velho missionário,
sobre um altar de pedras carcomidas,
que são da fortaleza o breviário.

Numa aliança de sangue, as lindas flores,
de duas raças por amor unidas
olvidam os passados dissabores

nesta Terra Africana, - a bem amada -
que Salvador Correia restaurou
em luta ardente, forte, ilimitada!
...........................................................................

Paira no ar uma oração fremente,
e um poeta que nunca mais voltou,
erguendo a voz, cantou humildemente:

Por obra e graça da divina glória,
que mais além da vida aconteceu,
Quicombo é um padrão da nossa história
que a nossa gente em devoção ergueu!

Gritai, clarins da fama e da vitória,
rezai preces de amor por quem morreu
dando valor a quantos, de memória,
dizem os seus nomes altos como um céu!

E Tu, ó grande mar das caravelas
e dos naufrágios, conduzindo as velas
te aportaram, gloriosas, no teu fundo,

Ergue-te ao alto em torre de menagem
e ensina à voz do vento esta romagem
para que o vento a leve a todo o mundo

Vieram-me naquelas horas à memória um turbilhão de imagens, pessoas, ideias, desejos, sonhos, pesadelos... tantas antagónicas entre si, tudo sem nexo, pensei então. Não compreendi como poderia “adorar” a dois deuses ao mesmo tempo, já que por norma o herói para o português era o bárbaro para o angolano e o herói para o angolano era o bárbaro para o português. Porém, não senti ao mesmo tempo qualquer incongruência ou antagonismo, vi-as apenas como estrelas cintilantes no meu universo mental.

Já mais contido da emoção e mais em controle sobre o meu pensar, lembro-me que sofri ainda mais por tomar perfeita consciência de que o meu mundo se acabara de fechar para mim. Angola era então tudo para mim. Tinha-a amado, sonhado, gozado, estudado, planeado e de repente tudo se dissipara num descolar leve e rápido do avião.

Como seria a vida em Portugal, no Brasil, na Austrália, ou no Canadá? Tudo países e lugares distantes e diferentes para mim então. Não senti medo do que estava por vir, senti sim medo porém daquilo que acabava de perder. O que tinha perdido naquela noite escura era o meu maior tesouro: a minha identidade angolana. Tomei então consciência de que jamais deixaria de ser angolano, ao mesmo tempo interiorizando que, a partir daquele momento, jamais o poderia sentir plenamente outra vez...

Lembro-me bem quando desembarquei de madrugada em Lisboa e pisei uma terra que me não era familiar, um continente novo, um ar mais frio, as pessoas um pouco diferentes... Senti então que não só um mundo tinha acabado para mim, mas que outro começava na alvorada desse novo dia.

Recém-casados, vivemos cerca de um ano e meio na área da grande Lisboa. Estando ainda a prestar serviço militar, pouco tinha que fazer durante a maior parte do mês. Preocupei-me então em conhecer o mais possível a história, lugares, eventos, personagens da cultura e da vida portuguesa e notei que começava a gostar, a sentir-me mais a vontade. Lia a imprensa e livros de todos os vectores sociais e políticos, visitava museus e lugares de relevo, tudo numa ânsia extrema de conhecer o meu novo país.

Encontrei nessa altura a obra de Fernando Pessoa que me fascinou e apaixonou de imediato e até hoje, identificando-me como ele no que toca ao passado glorioso de Portugal, ao mesmo tempo que me desmultiplicava em personalidades diferentes num anseio de encontrar a minha unidade fundamental como pessoa.

Entretanto notei, já em 1977, que nós não socializávamos com “portugueses” de Portugal. O nosso universo de amigos continuava a ser somente amigos que vinham dos tempos de Angola, agora vivendo a maior parte temporariamente em Portugal, até que dessem rumo definitivo às suas vidas. Não compreendia como era possível gostar de Portugal, e ao mesmo tempo não ter amigos “portugueses”. Isto fez-me pensar um pouco no paradoxo, pois não aceitava que tais valores se pudessem conciliar. Reparei então que o que me ligava a Portugal era a história, a língua e a cultura que tínhamos em comum. Não eram os portugueses que me ligavam a Portugal. Senti-me então como um estranho anónimo naquele mar de 10 milhões de pessoas. Senti então que não poderia a vir a ser português. Contudo, sentia ainda um forte vínculo com aquele jardim-país à beira mar plantado. Senti afinal que fui um produto do génio português na sua saga de trazer novos mundos ao mundo. Mas, por estranho que pareça, senti-me ao mesmo tempo um produto de Angola, da Angola que o português ajudou a criar.

Entretanto, a minha família estava já então separada e espalhada pelas sete partidas do mundo: a minha Mãe e irmãs Dilar e Paula em Vitória do Espírito Santo no Brasil, a minha irmã Ema em Lisboa, o meu irmão Rui em Cabinda, e a família da Estela no Canadá, e nós “temporariamente” em Lisboa, sem grande vontade de lançar raízes em Portugal.

Senti então, que devia procurar outros rumos, outros universos culturais em que pudéssemos recomeçar a nossa vida. Escolhemos o Canadá depois de o termos visitado durante alguns meses e termos ficado encantados com a sua beleza natural, e também para aceder a pressões familiares. Um mundo diferente, uma língua nova para mim (chumbei a inglês todos os anos no Liceu...), uma história recente para os canadianos de descendência europeia, uma história ancestral para os povos nativos índios... uma história fascinante para mim. Cedo arranjei emprego e mais cedo ainda retomei os meus estudos, que tinha interrompido em Angola. E assim passámos quatro ou cinco anos, a experimentar tudo o que era canadiano e Canadá. Por incrível que pareça, os invernos muito frios não nos causavam grande transtorno. A imensidão do país lembrava-me muitas vezes Angola, já que podíamos andar por horas de carro sem encontrar vivalma, dando-me assim a oportunidade de me ligar mais à terra e à paisagem.

Encontrámos novos amigos, estabelecemos novas relações que são hoje antigas e um tesouro de família. Sem darmos conta, uma imersão gradual estava em moção, uma imersão que me fazia sentir crescentemente canadiano. Veio entretanto o nosso filho Marco, já depois de oito anos de casados. Uma nova vida começou, centrada à volta das necessidades e amizades do Marco que acabou por nos absorver completamente. Íamos então assistir a corridas de ski nas montanhas mais próximas, caminhar pelas mais belas e mais altas montanhas das majestosas Montanhas Rochosas, parar por um momento na imensa pradaria canadiana sem começo nem fim, fazer campismo de tenda nos mais aprazíveis lagos, onde a quietude reina absoluta, respeitar e amar os animais e as quatro estações do ano. Começámos assim a participar na vida comunitária da pequena cidade em que vivemos, a tomar posições e ajudar certas causas que achávamos dignas de preservar ou atingir. Avançámos ainda mais nesta viagem até eu ser eleito por voto popular para um lugar político de que não gostei.

Contudo, e não sei ainda porquê, ao longo destes anos nunca tomámos a decisão de nos tornarmos oficialmente cidadãos canadianos. Adiámos sempre este passo inconscientemente... talvez porque não nos sentíssemos somente canadianos.

Por mera sorte, arranjei um emprego em 1980 no Conselho Tribal dos índios Kootenay, como quadro administrativo e financeiro, numa altura em que o Povo Kootenay tinha decidido tomar o seu futuro nas suas próprias mãos e desamarrar-se da teia da dependência política e económica do governo canadiano. A nossa organização, que começara com quatro ou cinco empregados em 1980, depressa começou a crescer até exceder hoje mais de quinhentos, abrangendo tudo o que fosse importante para o Povo Kootenay. Imerso que estava nas lides administrativas e financeiras, cedo aprendi e compreendi a profundidade e extensão da tragédia dos povos nativos da América do Norte. Quase dizimados pela guerra ou por doença, os poucos que sobreviveram à conquista foram postos em reservas que não são mais que sacos de pobreza na afluência do país, sem iguais direitos políticos ou económicos. Os seus filhos foram-lhes tirados para serem “educados” nas missões religiosas, cujo objectivo principal seria remover o índio de dentro do índio para transformá-los em cidadãos exemplares sem língua, cultura ou história. Ao fim de mais de vinte anos de vitórias e derrotas, identifiquei-me com a causa deste povo nobre até ao ponto de às vezes quase me sentir mais Kootenay que Canadiano. Neste processo fui honrado com um nome Kootenay genuíno, uma honra deveras rara, dada somente àqueles por quem a Nação Kootenay sente como verdadeiro irmão e compatriota.

Durante estes anos fui várias vezes ao Brasil para visitar a minha mãe, irmãs e demais família. Contudo, ia também ao Brasil para estudar e apreciar a influência dos povos de Angola e Portugal ao longo de quatro séculos na construção desse grande povo do Cruzeiro do Sul. Ia para relembrar Jorge Amado através dos seus personagens aliciantes, para relembrar a terra vermelha e a floresta verde, as belíssimas praias, as pequenas vilas coloniais, as majestosas igrejas, a música, a culinária, o candomblé. Ia para ver a cada canto a obra do escravo angolano naquele paraíso tropical. E lembro-me que me sentia parte dele. Eu, que nada de brasileiro tinha, senti que o Brasil tinha parte de mim!

Esta longa descrição da trajectória da minha vida, foi necessária para trazer à superfície o problema profundo com que me tenho debatido estes anos:

Afinal, quem sou eu? Qual é o meu país? Eu sou cidadão de que país?

Sei que sou angolano de linhagem, coração e nascença, mas já não me considero angolano por não ter vivido em Angola desde a minha juventude.

Gosto imenso e identifico-me com Portugal, mas não vivo em Portugal, não tenho amigos portugueses e não estou inserido na sociedade portuguesa, não podendo assim considerar-me português, apesar de ter bilhete de identidade e passaporte português. Senti-me um pouquito parte do Brasil mas não vivo lá.

Vivo no Canadá há mais de vinte anos, país que muito amo e chamo casa, mas sinto também que o inglês não é a minha língua materna, o MacDonald’s é ainda um conceito estrangeiro para mim, o longo inverno é ainda um pouco demais para mim.

Na minha experiência quotidiana, todos os dias lido com a luta de emancipação do Povo Kootenay que cada vez mais admiro e amo. Contudo, sei bem que nunca poderei ser índio...

Que sou afinal? Sim, sou um pouco de tudo, sou angolano, português, canadiano, um pouco brasileiro e até quase Kootenay. Sem ser nada, sou tudo e, em sendo tudo, nada sou. Não sou cidadão de primeira ou de segunda em nenhum país, sou uma mistura de tudo e de todos. Sei tão somente que o branco e o preto são apenas diferentes tonalidades de cinzento...

Vivi na África colonial, na Europa colonizadora, e na América colonial e colonizadora. De tudo gostei, de tudo ganhei um pouco para a minha formação, de tudo sou e sei um pouco... de tudo me enriqueci como cidadão neste admirável e já velho mundo novo.

Sou, como a Filomena Vieira tão bem o disse, simplesmente um Cidadão do Mundo. O meu país é o planeta Terra, a minha cidadania a humanidade.

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